Apresentação


Este blog destina-se a profissionais, estudantes e demais interessados nas áreas da Ciência da Informação, Arquitetura da Informação, Ciência da Computação, Tecnologia da Informação e História da Ciência, constituindo-se como um espaço para a publicação e discussão de temas que contribuam para a compreensão e desenvolvimento destas áreas

segunda-feira, 24 de junho de 2013

PEC 37: impunidade ou defesa dos interesses públicos ?
Instituições como partidos políticos, governos em todas as esferas de poder, empresas, bancos e imprensa, apesar de suas identidades reconhecidas pela sociedade, a rigor nada fazem enquanto organizações. Somente pessoas, como eu ou você, é que tomam decisões e praticam ações, que são creditadas à tais instituições.
Ocorre que políticos, assim como governantes, juízes, empresários, banqueiros e até mesmo clérigos, entre tantas outras atividades, com frequência colocam seus interesses pessoais acima dos interesses da coletividade, muitas vezes indo contra os interesses da própria organização a qual representam. Essa prática, constatada com regularidade, independe do tipo de organização e até mesmo do país em que se vive. Trata-se de uma característica da natureza humana. E essa característica da natureza humana, associada à condições de poder de qualquer espécie, aparece com tanto mais frequência quanto menos transparência e controle são exigidos de seus praticantes. Por este motivo existem tantos órgãos de controle em qualquer tipo atividade humana. E ainda assim, a quantidade comprovada de desvios dos objetivos declarados destas organizações em função de interesses pessoais não é pequena.
Talvez seja por esta razão que, segundo diversas fontes facilmente acessíveis pela internet, apenas em três países do mundo o Ministério Público não possui poder de investigação criminal: Indonésia, Quênia e Uganda. Essas são nações que enfrentam grandes problemas sociais e econômicos, inclusive no âmbito da segurança pública.
No Brasil, esta situação tem sido agravada por um sistema jurídico que favorece a impunidade daqueles que detém poder econômico ou influência política, por meio de inúmeras instâncias, progressão de pena e outras peculiaridades, que foram originalmente pensadas para a defesa contra uma condição de ditadura que não mais existe.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 37/2011, apresentada pelo deputado federal Lourival Mendes (PT do B/MA), propõe o acréscimo de um parágrafo ao artigo 144 da Constituição Brasileira, definindo a competência para “a apuração das infrações penais [...] privativamente às polícias federal e civis dos estados e do Distrito Federal”. Deste modo, a aprovação da PEC 37 implicará que investigações criminais serão de competência exclusiva das polícias Civil e Federal. Diversas interpretações jurídicas entendem que esta exclusividade de investigação das polícias determina que outros órgãos, além do Ministério Público, ficariam impedidos de realizar investigações, como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), a Receita Federal, a Controladoria-Geral da União, o Banco Central, a Previdência Social, entre tantos outros, e que poderão ter suas ações questionadas e invalidadas em juízo.
Por outro lado, não existe para o ser humano uma verdade única, absoluta, somente interpretações, pontos de vista pessoais e, portanto, subjetivos, que moldam-se às condições de tempo e lugar. O  processo, do qual resulta o que chamamos de conhecimento, não ocorre obrigatoriamente por meio de um processo pontual, mas realiza-se através de uma dinâmica contínua, regulada por sucessivas aproximações à medida que as fontes de informação, incluindo a própria memória, são revisitadas e reexaminadas a cada novo ciclo. A experiência do mundo ao nosso redor se dá pela contínua redefinição daquilo que denominamos de normalidade.
A natureza subjetiva da percepção e do conhecimento humano nos torna vulneráveis à conclusões superficiais e precipitadas, principalmente quando estamos sujeitos à manipulação de informações tanto por parte daqueles que defendem seus interesses pessoais como por alguns que defendem os interesses legítimos de suas instituições. Assim, cabe perguntarmos a quem mais interessa a aprovação da PEC37. Não devemos confiar previamente em tudo que nos dizem ou que é publicado pela mídia de qualquer tipo, inclusive a social. Para minimizar as possibilidades de ser usado como massa de manobra, busque as origens das informações e verifique a sua credibilidade e veracidade. Desconfie de todos que se autoproclamam ou agem como se fossem os únicos detentores da verdade. O autoritarismo que não admite questionamentos é um dos principais indícios da defesa de interesses pessoais, que frequentemente não conseguem ser qualificados como legítimos ou éticos.
 Será que o mundo todo está errado e somente Indonésia, Quênia e Uganda é que estão no caminho adequado? Será que o Brasil tem mais semelhanças com estes três países do que com todos os outros países do mundo?
É preciso que se tome cuidado para não pegarmos a contramão da história e provocarmos retrocessos em questões que, para serem contornadas, exigiram décadas de esforço e muitas vidas das gerações anteriores.
Gilberto L. Fernandes
Brasília/DF, 24 de junho de 2013.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Anatomia da percepção


“Observar, todos nós observamos. A cada momento estamos atentos a um número praticamente infinito de estímulos, e colocamos nesta atividade os nossos órgãos sensoriais todos. No entanto, da imensa gama de informações que recebemos, apenas uma pequena parcela nos interessa, e mesmo assim este interesse é momentâneo. Uma vez atingido nosso objetivo imediato, nossa atenção se volta para outros dados, e aqueles iniciais são normalmente esquecidos. Via de regra, apenas conseguimos nos recordar de uma parcela ínfima dos estímulos com os quais entramos em contato, e mesmo assim, por prazos relativamente curtos. A imensa maioria do que observamos se perde.” (TOMANIK, 2004, p. 64-65)
O estudo do mecanismo de percepção sensorial inicia-se, naturalmente, pela captação de estímulos e sensações vindos do mundo exterior pelos órgãos dos sentidos e seus receptores sensoriais, que os encaminham ao cérebro para serem processados. Porém, antes da abordagem propriamente dita do funcionamento deste mecanismo de percepção, entendemos ser adequado destacamos algumas definições neurofisiológicas que serão utilizadas ao longo deste texto (BRITO, 2010, p. 2-7):
·         Estímulo sensorial: “uma forma de energia que pode ser captada e interpretada por um sistema sensorial apropriado”;
·         Receptor sensorial: “uma estrutura que responde à presença de um estímulo”, responsável pela transdução dos estímulos externos em sinais eletroquímicos;
·         Transdução sensorial: “a capacidade de todo receptor sensorial transformar a energia de um estímulo em um sinal biológico (elétrico)”;
·         Sensação: o “reconhecimento da presença de um estímulo e de suas propriedades básicas”, resultantes do funcionamento do sistema sensorial;
·         Percepção sensorial: “a capacidade de dar às sensações significado e integração”.
A partir das definições anteriores, os componentes do sistema sensorial humano podem ser identificados e separados fisiologicamente como os órgãos dos sentidos, com seus respectivos receptores sensoriais que convertem os estímulos externos em sinais biológicos, as aferências neurais (nervos periféricos e vias neurais), que conectam os órgãos do sentido ao cérebro e encaminham os estímulos externos, captados e transformados pelos receptores sensoriais, ao último componente do sistema sensorial, as áreas sensoriais centrais, envolvidas diretamente no processamento e interpretação destes sinais biológicos, gerando a percepção sensorial (BRITO, 2010, p. 12-16).
Seguindo o fluxo dos estímulos sensoriais pelo sistema cognitivo, e baseado em conhecimentos já sedimentados da neurofisiologia, pretende-se agora demonstrar que o processamento dos estímulos primários, oriundos dos sentidos, determina a formação de uma percepção sensorial, insuficiente para a compreensão do mundo que nos cerca, e que somente após uma nova etapa de processamento dessa percepção primária é que se torna possível alcançar esta compreensão, em um novo estado mental, que neste trabalho denomina-se de impressão sensorial. Pretende-se também demonstrar que as impressões sensoriais, via indireta de percepção da realidade objetiva, são os mais elementares constructos mentais que representam o mundo exterior, passíveis de serem conscientizados e armazenados. De modo a caracterizar estes dois conceitos, serão apresentados em seguida alguns contrapontos entre a percepção sensorial e a impressão.
Tomando-se como exemplo a visão, sabe-se que durante o processo de percepção de uma imagem, os fótons captados pela retina de cada olho formam imagens invertidas e bidimensionais. Entretanto, o sistema sensorial, após o processamento primário dos estímulos visuais vindos da retina, corrige este efeito, produzindo uma imagem que é percebida sem inversão e em três dimensões. Sabe-se também que é possível a uma pessoa ter olhos e nervos ópticos saudáveis e ainda assim ser privada do sentido da visão, devido a lesões em partes específicas do encéfalo, como o tálamo, o córtex ou as vias neuronais. Nesse caso, as percepções visuais externas eventualmente chegam ao cérebro, mas não conseguem ser processadas. De modo idêntico, devido aos avanços recentes da medicina na área da neurofisiologia e da microeletrônica, existem casos documentados de pacientes com deficiências visuais degenerativas, ou lesões relacionadas à idade, devido a problemas que afetam exclusivamente os olhos ou os nervos ópticos, que conseguem recuperar a faculdade da visão através de câmaras de vídeo ligadas diretamente ao cérebro, por meio de eletrodos (RODRIGUES et. al., 2004; SAFRAN, 2008; TAYLOR, 2011). Entretanto, pacientes privados do sentido da visão desde o seu nascimento não têm os mesmos resultados neste tipo de procedimento médico que outro paciente que tenha perdido a faculdade da visão após este sentido estar amadurecido. Para os pacientes que nunca enxergaram antes, torna-se necessário um período maior de adaptação e aprendizado no reconhecimento das imagens, antes que possam ser geradas impressões com a mesma qualidade e inteligibilidade do que aquelas geradas pelos pacientes que já enxergaram anteriormente. Pelos exemplos acima, evidencia-se a independência funcional existente entre os componentes do sistema sensorial da visão O mesmo ocorre com os demais sentidos.
Os diversos tipos de ilusão que acometem o ser humano em sua interação com o mundo, podem servir de indicador da influência que cada um dos componentes do mecanismo da percepção sensorial têm na formação das impressões do mundo que o cerca. No contexto deste trabalho, uma definição apropriada para ilusão seria a discrepância entre percepções ocorridas em diferentes condições do observador, e não necessariamente entre o que é percebido e a realidade. Por esta definição, ilusões podem ocorrer tanto entre diferentes observadores como em condições diversas de observação de um mesmo observador.
Tomemos o seguinte exemplo de ilusão. Uma pessoa, após a ingestão de algumas taças de vinho, além de sua capacidade de metabolizar o álcool contido na bebida, poderá ter a produção e funcionamento de seus neurotransmissores afetados e sofrer interferências nas sinapses de seus neurônios. Como consequência destes distúrbios, podem ocorrer falhas no processamento dos estímulos externos, da percepção sensorial ou no mecanismo de apreensão, gerando no sujeito cognoscente a impressão de enxergar imagens turvas, ou mesmo em duplicidade, apesar de nesse caso não haver qualquer problema detectável em seus olhos ou nervos ópticos. Embora existam ilusões sensoriais que podem enganar o cérebro, provocadas não somente pela visão, mas por todos os sentidos, o tipo de ilusão cognitiva causada pelo álcool é provocada por distúrbios momentâneos nos mecanismos que processam os estímulos vindos do sentido da visão. As ilusões visuais, as mais conhecidas e estudadas, podem, em princípio, ser classificadas como sendo de origem óptica, sensorial ou cognitiva, como no exemplo acima (BALDO e HADDAD, 2003, p. 3). Mais à frente, quando for abordado o mecanismo de interpretação, será retomada esta questão relativa às ilusões e ambiguidades da percepção.
Além das ilusões visuais relativas ao espaço, como no exemplo acima, o ser humano também está sujeito a ilusões sensoriais e cognitivas relativas à dimensão temporal. A simples contemplação de um céu noturno estrelado, que costuma causar admiração e propensão à reflexão em boa parte das pessoas, pode servir de exemplo de ilusão temporal. Talvez as sensações provocadas por esta experiência seja uma reação inconsciente ao fato de estarmos, na verdade, olhando para um passado distante, através de um mosaico temporal que nos conta a história de milhares de anos antes, quando a luz de cada estrela visualizada partiu em sua jornada até a Terra. Apesar da luz de cada estrela percebida a olho nu ter partido em momentos diferentes, com um intervalo que pode variar de quatro até cerca de dez mil anos, têm-se a nítida impressão de que se está olhando para uma configuração celeste em tempo real.
À medida que esta experiência é trazida para mais perto de nós, o grau de estranhamento da situação se altera. Quando se olha o Sol, vê-se onde ele estava a cerca de oito minutos antes. Se por acaso a Lua explodisse, seria necessário um pouco mais de um segundo para que se percebesse o ocorrido. Em nossa interação com o mundo real, criamos a cada momento uma imagem mental congelada do mundo observado. Apesar de a luz viajar a uma velocidade espantosamente alta, ela não é instantânea e precisa de algum tempo para chegar à nossa retina e mais algum tempo ainda para ser processada como um estímulo luminoso. Desse modo, tudo o que percebemos em nossas imagens mentais congeladas como sendo o agora, pertence ao passado. E, como não podemos estar em uma mesma posição e no mesmo momento que outras pessoas, a noção do agora e a imagem mental congelada de cada um de nós é individualizada e sofre variações proporcionais às diferenças relativas de posição e de velocidade, configurando uma multiplicidade de realidades pessoais. A subjetividade da realidade percebida é explicada pelo físico norte-americano Brian Greene (1963 - ):
“Tudo o que você está vendo agora já aconteceu. Você não está vendo as palavras desta página como elas são agora; o livro está a uns dois palmos dos seus olhos e você vê as palavras como elas eram um bilionésimo de segundo antes.
[...] embora a ideia da imagem mental congelada capte o nosso senso da realidade, ou seja, a nossa percepção intuitiva do que ‘está aí’, ela consiste em eventos que não podemos experimentar, nem afetar, nem mesmo registrar agora.
[...] É notável que essa maneira aparentemente direta de pensar leva a um conceito inesperadamente expansivo da realidade. Veja que, de acordo com o espaço e tempo absolutos de Newton, as imagens congeladas de todos a respeito do universo em dado momento contêm exatamente os mesmos eventos. O agora de todos é o mesmo agora e, portanto, a lista de agoras de todos para determinado momento é sempre a mesma. Se alguém ou algo está na sua lista de agoras relativa a determinado momento, também estará necessariamente na minha lista de agoras relativa a esse mesmo momento. A intuição da maioria das pessoas ainda se prende a esse tipo de pensamento, mas a história que a relatividade especial nos conta é muito diferente. [...] Dois observadores em movimento relativo têm agoras – momentos individuais do tempo, a partir da perspectiva de cada um – que são diferentes entre si. [...] E agoras diferentes implicam em listas de agoras diferentes. Os observadores que estão em movimento relativo entre si têm concepções diferentes a respeito do que existe em um momento dado e, por conseguinte, têm concepções diferentes da realidade.” (GREENE, 2005, p. 161-162)
A percepção visual do Sol, experenciada por observadores na Terra sempre com cerca de oito minutos de atraso, conforme descrito anteriormente, torna evidente uma distinção fundamental entre fenômeno e realidade objetiva. Os fótons capturados pela retina humana não são eles próprios o Sol. Se eventualmente o Sol se desintegrasse, excetuando-se os efeitos imediatos da força de gravidade, continuaria ainda a ser percebido por todos em sua órbita celeste, apesar de não mais fazer parte da realidade física. A desintegração do exemplo anterior conforma-se como um fato, ou ato de transformação da realidade objetiva, diferentemente do fenômeno. Segundo Husserl, o fenômeno distingue-se da realidade física, da coisa em si, podendo ser definido como a aparição do objeto real, aquilo que se apresenta à apreensão. Demonstra-se deste modo que o acesso do sujeito cognoscente à realidade objetiva é sempre mediada pelo fenômeno, implicando, por consequência, que o conhecimento seja uma imagem da realidade, um conjunto de propriedades do objeto observado apreendidas e interpretadas pelo sujeito.

A dependência da percepção humana a aspectos tanto espaciais quanto temporais, pode propiciar o surgimento de ilusões sensoriais e cognitivas com o envolvimento simultâneo de ambas as dimensões. O som e a imagem de um avião supersônico não nos atingem ao mesmo tempo, do mesmo modo que, apesar de imperceptível, a voz e o movimento labial de uma pessoa que esteja conversando a poucos centímetros de nós. Observadores que estejam a distâncias diferentes do avião ou do interlocutor, receberão o som e a imagem com intervalos proporcionalmente diferentes. Adicionalmente, estes dados sensoriais, provenientes dos sentidos da audição e da visão, são processados pelo sistema nervoso humano com diferentes velocidades (BALDO e HADDAD, 2003, p.4). A descrição destas ilusões sensoriais e cognitivas a que estamos expostos, serve ao propósito de ilustrar, ainda que superficialmente, o funcionamento do mecanismo de percepção humano.

Uma das mais significativas evidências, e talvez definitiva, a demonstrar a distinção entre percepção sensorial e impressão cognitiva seja a persistente, e bastante comum, ilusão cognitiva da presença de membros e partes do corpo humano, após sua amputação. Estudos recentes comprovam que até mesmo a imagem e consciência que o ser humano tem de seu próprio corpo e de seus limites físicos, na realidade retrata uma simulação e não seu corpo de fato, baseada em modelos mentais criados pelo cérebro. Relatos do conceituado médico e neurofisiologista brasileiro Miguel Nicolelis (1961 - ) atestam estas características mentais:
 “[...] pelo menos 90% dos pacientes que sofrem amputações experimentam os sintomas que caracterizam o que a literatura médica chama de “membro fantasma”: a vívida sensação de que uma parte do corpo que não existe mais permanece ativa e ligada a ele. [...] Essa sensação é tão real quanto angustiante, [...] se estende por todo o membro amputado e, efetivamente, o reconstrói na mente do paciente.” (NICOLELIS, 2011, p. 103)
“Pesquisas revelam que a sensação de membro fantasma pode se manifestar após a amputação de qualquer parte do corpo, e não somente de pernas e braços.” (NICOLELIS, 2011, p. 106)
“[...] a imagem do corpo e de seus limites que o cérebro contém permaneceria ativa mesmo depois da remoção física de um membro, criando a sensação anômala, mas absolutamente real, que caracteriza o membro  fantasma.” (NICOLELIS, 2011, p. 110)
“[...] simulações geradas internamente pelo cérebro, e não o fluxo ascendente de informações táteis transportado pelos nervos periféricos, é que ditam a modelagem e a manutenção da percepção da forma e d o limite do corpo que habitamos.” (NICOLELIS, 2011, p. 117)
“Como era de esperar de um criador que conhece muito bem os detalhes da arte de esculpir a realidade, o cérebro nos provê com a sensação de habitar um corpo concreto e real que, no final das contas, não passa de mera ilusão neural.” (NICOLELIS, 2011, p. 119)
Claramente, há uma distinção entre os estímulos captados pelos órgãos dos sentidos, o resultado do processamento primário destes estímulos, ou percepção sensorial, e a impressão que temos do mundo exterior após uma nova etapa de processamento. Naturalmente, deve existir no cérebro humano um mecanismo apropriado para a construção das impressões cognitivas, em uma segunda etapa de processamento.
Uma vez caracterizada a distinção entre percepção sensorial e impressão cognitiva, faz-se necessário detalhar o processo e o mecanismo que realiza tal transformação. Atualmente, por meio de técnicas de visualização em tempo real do modo de operação do cérebro, em exames de ressonância magnética funcional e de tomografia pela emissão de pósitrons (PET), e de outras técnicas recentes da medicina, como a estimulação através de microeletrodos implantados diretamente em regiões específicas do córtex, tornou-se possível um conhecimento e mapeamento razoáveis do fluxo e de como se realiza o processamento dos estímulos vindos dos sentidos (BALDO e HADDAD, 2003; NICOLELIS, 2011). Entretanto, por não fazer parte do escopo deste trabalho o mapeamento detalhado do percurso e processamento dos sinais biológicos de cada um dos sentidos sensoriais, esta análise será restrita apenas ao processamento dos estímulos originados pelo sentido da visão.
De acordo com registros históricos, os mecanismos de percepção do sentido da visão tiveram o seu funcionamento correto proposto primeiramente pelo astrônomo alemão Johannes Kepler (1571 – 1630), em 1604. Diferentemente das explicações aceitas na época, Kepler constatou e propôs que as imagens formam-se na retina, de modo invertido, e relacionou as causas de problemas comuns da visão, como a miopia e hipermetropia, à má formação destas imagens. As explicações de Kepler, mais tarde seriam confirmadas por René Descartes (1596 – 1650). (DONATELLI, 2008)
Sabe-se atualmente que a percepção de imagens é processada simultaneamente por diferentes áreas especializadas, distribuídas pelo encéfalo[1] humano. A partir de células fotossensíveis presentes em nossas retinas, os cones e os bastonetes, as imagens são codificadas e enviadas através do nervo óptico, na forma de impulsos eletroquímicos, ao tálamo[2], um centro de organização e distribuição cerebral para onde convergem diversas vias neuronais. Situado na região mais profunda de ambos os hemisférios cerebrais (figura 1), o tálamo dá início a um processamento paralelo, repleto de circuitos de realimentação, que irá resultar na construção da percepção visual (BALDO e HADDAD, 2003).
Os cones, células responsáveis pela distinção da frequência das ondas luminosas, ou cores, e os bastonetes, responsáveis pela percepção da intensidade luminosa e de imagens em situações de baixa luminosidade, estão presentes na retina humana na proporção aproximada de 60 milhões de cones para 120 milhões de bastonetes (SAC, 2012). Após passar pelo tálamo, os sinais vindos da retina, gerados simultaneamente pelos cones e bastonetes, seguem paralelamente por duas vias neurais principais, as vias ventral e dorsal. Pela via ventral, ao longo da qual ocorrem processos de identificação dos objetos, estes sinais são enviados ao córtex visual primário, representados respectivamente pela linha contínua e por v1 na figura 2 (BALDO e HADDAD, 2003), onde ocorre uma das etapas prioritárias neste processo, a detecção de bordas para a distinção entre objetos diversos. Ainda pela via ventral, os estímulos visuais originados da retina são enviados à região marcada como v4 na figura 2 para o processamento de cores, e depois ao córtex temporal inferior para o processamento de formas. Paralelamente, os mesmos sinais seguem pela via dorsal, representada pela linha pontilhada na figura 2, onde ocorre o processamento de localização espacial dos objetos, sendo estes sinais enviados ao córtex temporal medial, na região designada por v5 na figura 2, para o processamento das propriedades relacionadas ao movimento e profundidade.
Fig. 1. Encéfalo
Fig.2. Vias neuronais
Apesar de considerar-se o aparelhamento sensorial e cognitivo humano como uma maravilha da natureza, e da tecnologia disponível no momento ainda se encontrar em um estágio distante do objetivo de conseguir reproduzir artificialmente estas características em sua plenitude, os órgãos dos sentidos humanos são relativamente limitados em suas capacidades sensoriais. Os dados fornecidos ao cérebro pelos sentidos são insuficientes ou de qualidade questionável para a formação de impressões cognitivas. O aparelhamento sensorial humano, após milhares de anos de processo evolutivo, é capaz de perceber apenas uma faixa estreita de frequências e outra faixa estreita do espectro eletromagnético, denominados de som e luz. A cada momento, somos bombardeados por uma quantidade de dados absurdamente maior do que os sentidos conseguem captar ou o cérebro processar. Desse modo, o cérebro humano, partindo de percepções sensoriais fragmentadas e discrepantes, precisa efetuar correções nos dados que lhe chegam para que possam ser produzidas impressões cognitivas e um entendimento que representem a realidade externa com alto grau de coerência e fidelidade. O reconhecido físico norte-americano Leonard Mlodinow (1954 - ) nos fornece uma ideia das limitações sensoriais humanas, que tornam necessário um duplo processamento dos estímulos sensoriais:
“Faraday notou que a percepção humana não é uma consequência direta da realidade, e sim um ato imaginativo.
A percepção necessita da imaginação porque os dados que encontramos em nossas vidas nunca são completos, são sempre ambíguos. [...] numa corte de justiça, poucas coisas são mais levadas em consideração que uma testemunha ocular. No entanto, se apresentássemos em uma corte um vídeo com a mesma qualidade dos dados não processados captados pela retina do olho humano, o juiz poderia se perguntar o que estávamos tentando esconder. Em primeiro lugar, a imagem teria um ponto cego no lugar em que o nervo óptico se liga à retina. Além disso, a única parte de nosso campo de visão que tem boa resolução é uma área estreita, de aproximadamente 1 grau de ângulo visual, ao redor de centro da retina, uma área da largura de nosso polegar quando o observamos com o braço estendido. Fora dessa região, a resolução cai vertiginosamente. Para compensar essa queda, movemos constantemente os olhos pata fazer com que a região mais nítida recaia sobre diferentes pontos da cena que desejamos observar. Assim, os dados crus que enviamos ao cérebro consistem numa imagem tremida, muito pixelada e com um buraco no meio. Felizmente, o cérebro processa os dados, combinando as informações trazidas pelos dois olhos e preenchendo as lacunas, com o pressuposto de que as propriedades visuais de localidades vizinhas são semelhantes e sobrepostas. O resultado [...] é um alegre ser humano sujeito à convincente ilusão de que sua visão é nítida e clara.” (MLODINOW, 2009)
À medida que avança a compreensão sobre o funcionamento dos mecanismos da percepção humana, fica claro que suas limitações sensoriais e cognitivas representam um fator adicional de subjetividade na construção da interpretação da realidade objetiva e na formação do conhecimento fenomenológico. As implicações destas limitações para a Ciência da Informação foram identificadas por Bertram Brookes, em 1980, conforme extrato de seu artigo sobre os aspectos filosóficos dos fundamentos da Ciência da Informação:
“O espaço aparentemente vazio à nossa volta está fervilhando com informações. Muito disto nós não podemos estar conscientes porque os nossos sentidos não respondem a elas. Muito disto nós ignoramos porque temos mais coisas interessantes para prestar atenção. Mas nós não podemos ignorar isso se estivermos buscando uma teoria geral da informação.” (BROOKES, 1980, p. 132)
Deste modo, a partir dos conceitos filosóficos e dos experimentos e explicações neurofisiológicas do funcionamento do sistema cognitivo humano, descritos nesta seção, propõe-se que a percepção sensorial seja entendida como o resultado do processamento primário dos estímulos vindos dos sentidos pelo sistema sensorial, formado pelos órgãos dos sentidos, vias neurais e certas áreas especializadas do cérebro. E impressão cognitiva, como o resultado do processamento das percepções sensoriais, em uma segunda etapa de processamento. Os experimentos e mecanismos neurofisiológicos descritos nesta seção sugerem que as percepções são as entradas e as impressões são as saídas, de um duplo mecanismo de processamento automático e não intencional, dos estímulos vindos do mundo externo. Ao conjunto de componentes deste duplo mecanismo de processamento denominou-se, neste texto, de mecanismo de percepção humana, conforme representado na figura 3, a seguir.
Fig.3


[1] O encéfalo é o conjunto de estruturas anatômica e fisiologicamente interligadas, formado pelo cérebro (ou córtex cerebral), cerebelo, bulbo raquidiano, corpo caloso, formação reticular, tálamo e hipotálamo (WIKIPEDIA, 2012a).
[2] Quase todos os sinais direcionados ao córtex passam pelo tálamo, onde são reorganizados e/ou controlados, excetuando-se os estímulos originados pelo sentido do olfato (WIKIPEDIA, 2012b).

Referências Bibliográficas
BALDO, Marcus Vinícius C.; HADDAD, Hamilton. Ilusões: o olho mágico da percepção. Revista Brasileira de Psiquiatria, vol. 25, suppl. 2. São Paulo: Departamento de Fisiologia e Biofísica. Instituto de Ciências Biomédicas. Universidade de São Paulo, 2003, pp. 3, 4, Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1516-44462003000600003>. Acesso em: 03 de março de 2012.
BRITO, Márcia do Nascimento. Sistemas sensoriais – Propriedades gerais da recepção sensorial. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2010. Disponível em: <http://www.google.co.uk/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=42&cts=1331257818468&ved=0CDEQFjABOCg&url=http%3A%2F%2Fwww.dfs.uem.br%2Findex.php%3Foption%3Dcom_phocadownload%26view%3Dcategory%26id%3D15%3Ap%26download%3D121%>. Acesso em 08/03/2012.

BROOKES, B.C. The foundations of information science. Part I. Philosophical aspect. Journal of information Science, v. 2, p. 125-133, 1980.
DONATELLI, Marisa Carneiro de Oliveira Franco. A visão e o princípio de correspondência em Descartes. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 1 n. 1, p. 26-35, jan | jun 2008. Disponível em <www.sbhc.org.br/arquivo/download?ID_ARQUIVO=63>. Acesso em 18/03/2012.
GREENE, Brian. O tecido do cosmo: o espaço, o tempo e a textura da realidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, pp. 9, 19-21, 36, 67-69,124, 151, 161-162, 204, 208, 579.
MLODINOW, Leonard. O andar do bêbado, Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 2009, pp. 181-182.
NICOLELIS, Miguel. Muito além do nosso eu. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 22, 51-53, 65-66, 69-70, 103, 106, 110, 116, 117, 119.
ROSEMBERG, Alex. Introdução à filosofia da ciência. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
SAFRAN, Avinoam. Cego recebe implante de "olho biônico", 2008.  Disponível em <http://www.swissinfo.ch/por/Capa//Cego_recebe_implante_de_olho_bionico.html?cid=6459784>. Acesso em 12/05/2012.
TAYLOR, Richard. Forecast Calls for Nanoflowers to Help Return Eyesight: Physicist Leads Effort to Design Fractal Devices to Put in Eyes. Science News, 2011. Disponível em <http://www.sciencedaily.com/releases/2011/05/110505181537.htm>. Acesso em 12/05/2012.

TOMANIK, Eduardo Augusto. O olhar no espelho: “conversas” sobre a pesquisa em Ciências Sociais. Maringá: Eduem, 2004, p 64-68, 85-87..
WIKIPEDIA. Enrcéfalo. 2012a. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Enc%C3%A9falo>. Acesso em 13/03/2012.
WIKIPEDIA. Tálamo. 2012b. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/T%C3%A1lamo_(anatomia)>. Acesso em 13/03/2012.


O caráter ilusório da realidade


A experiência da realidade para nós, seres humanos, é algo acessível somente por meio de mecanismos internos de percepção e de pensamento, que produzem uma interpretação pessoal e subjetiva da realidade objetiva. A partir do princípio acima, podemos destacar a existência de:
¡  um mundo físico, da realidade objetiva;
¡  de elementos desta realidade objetiva que se apresentam à apreensão humana, comumente definidos como fenômeno;
¡  do sujeito cognoscente.
Segundo Tomanik (2004), “devemos, então, passar a distinguir o fato (dado bruto, tal como existente) do fenômeno (o dado tal como percebido pelo ser humano). O ser humano adulto e normal se relaciona apenas como os fenômenos, nunca com os fatos”.
O modo como se processa a percepção da realidade objetiva, há muito têm despertado a atenção de pensadores. Em seu livro A República, o filósofo grego Platão (428 a.C. – 348 a.C.) nos apresenta o célebre mito da caverna, metáfora que ressalta o caráter ilusório da realidade, e que tem sido usada como referência por diversos autores que abordam o tema da percepção e compreensão humana.
[...] Mas se não temos acesso direto ao mundo exterior, se toda a realidade é mediada pelos nossos sentidos, como podemos confiar na percepção que temos desse mundo? Se só podemos comparar percepções com outras percepções, como podemos saber em que medida nossos perceptos correspondem aos objetos tais como eles realmente são? A resposta é: não sabemos! Estamos fadados a viver na caverna de Platão e, ao contrário do que acontece na história, não podemos sair e ver o mundo como ele ‘realmente é’.” (BALDO e HADDAD, 2003)
“Platão disse que estamos presos numa caverna e só conhecemos o mundo por meio das sombras que ele projeta nas paredes da caverna. O crânio é nossa caverna, e as representações mentais são as sombras. As informações em uma representação interna são tudo o que podemos conhecer a respeito do mundo.” (PINKER, 1997)
Somos obrigados a reconhecer que a questão que intrigava Platão continua a nos desafiar, cerca de 2.400 anos mais tarde, e que não temos acesso direto à realidade objetiva. Entretanto, à medida que avança a compreensão sobre o funcionamento dos mecanismos da percepção humana, fica claro que suas limitações sensoriais e cognitivas representam um fator adicional de subjetividade na construção da interpretação da realidade objetiva e na formação do conhecimento. As implicações destas limitações para a Ciência da Informação foram identificadas por Bertram Brookes, em 1980, conforme extrato de seu artigo sobre os aspectos filosóficos dos fundamentos da Ciência da Informação:
“O espaço aparentemente vazio à nossa volta está fervilhando com informações. Muito disto nós não podemos estar conscientes porque os nossos sentidos não respondem a elas. Muito disto nós ignoramos porque temos mais coisas interessantes para prestar atenção. Mas nós não podemos ignorar isso se estivermos buscando uma teoria geral da informação.” (BROOKES, 1980)


quinta-feira, 28 de junho de 2012

Ciência x Filosofia


Cada época tem suas próprias ideias e crenças, que influenciam o modo como se desenvolve a ciência. O cientista social sofre múltiplas influências no desenvolvimento de suas pesquisas, destacando-se os paradigmas e interesses do grupo ao qual pertence e ao contexto no qual se insere o seu trabalho (TOMANIK, 2004, p. 11).
O problema do entendimento humano, ocupando há vários séculos a mente de renomados pensadores, como Locke, Hume, Kant, Schopenhauer, Dilthey e Husserl, entre outros, vem sendo tratado por abordagens metodológicas diversas, próprias de cada época. Em comum, estas abordagens têm sido amparadas apenas por uma ou mais das disciplinas citadas anteriormente, todas, porém, no âmbito ou das ciências da natureza ou das ciências sociais. Estas abordagens têm-se mostrado, ao longo do tempo, ineficientes e incapazes de alcançar o seu propósito explicativo. Em seu tempo de vida, a grande maioria dos filósofos mencionados acima podia contar quase que tão somente com suas próprias conjecturas mentais e a de seus antecessores, apoiadas pelas ferramentas da lógica, então disponíveis. Com a evolução da ciência nas diversas áreas do conhecimento, tornou-se possível testar hipóteses essencialmente filosóficas, construídas tanto por filósofos como por psicólogos e demais cientistas sociais, por meio de experimentos elaborados em disciplinas como a física, a química, as neurociências e a computação, permitindo uma abordagem multidisciplinar de tais discussões, e a obtenção de resultados mais objetivos.
Seguindo esta mesma linha de pensamento, o filósofo norte-americano Alexander Rosenberg (1946 - ) afirma que a interação entre a ciência e a filosofia, especialmente o modo como as teorias e descobertas científicas impactam a filosofia, demonstram como uma é indispensável à compreensão da outra. Rosenberg estabelece uma definição funcional da filosofia, separando-a em dois grupos, de acordo com as questões que tratam: no primeiro grupo estariam as “questões a que a ciência – física, biológica, social e comportamental – não pode responder agora e talvez nunca seja capaz de responder”; no segundo grupo estariam as “questões sobre o motivo pelo qual as ciências não conseguem responder à primeira série de questões” (ROSEMBERG, 2009, p. 17). Certamente, as tentativas de definições gerais sobre o conceito de informação, as exaustivas discussões sobre o tema, assim como os esforços para a construção de uma teoria unificada da informação (HOFKIRCHNER, 1999), se encaixam na categoria de problemas que a Ciência da Informação não tem conseguido responder e que, sem um relacionamento estreito com a filosofia, talvez nunca consiga.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

A subjetividade do conhecimento - III


A subjetividade do conhecimento, em uma acepção fenomenológica, está relacionada às diversas perspectivas possíveis de apreensão das características de um objeto, evento ou fontes de informação. Já a falta de neutralidade está associada aos fatores que influenciam a interpretação do investigador sobre suas experiências. De acordo com Sayão (2000), a informação é um fenômeno que: “[...] tem muitas faces e estas faces podem ser abordadas a partir de uma variedade muito grande de referenciais. Cada novo ângulo revela aspectos diferentes do fenômeno, mas nenhum o revela completamente”.
À Husserl (2001), devemos a ideia fundamental “de que só se pode alcançar o entendimento que se quer através de uma análise fenomenológica da essência dos atos em questão, que são atos da ‘imaginação’, em um sentido abrangente e tradicional de Hant e Hume”.
Segundo Hume, o entendimento humano distingue, com suas limitações cognitivas e propensão a erros cognitivos, o que a imaginação apreendeu ao observar um fenômeno. Entretanto, o reconhecimento prévio desta falhabilidade humana induz uma busca pelo refinamento do entendimento. Deste modo, reforçando a tese da inexistência de uma causalidade obrigatória de distorções, entendemos que, apesar do investigador ter uma percepção própria dos fenômenos experenciados, baseada em suas crenças e conhecimentos prévios, e portanto sem neutralidade, isto não implica que sua interpretação, apoiada em técnicas e metodologias científicas, será necessariamente distorcida em relação à realidade empírica.
 “O mundo é minha representação. Esta é uma verdade que vale em relação a cada ser que vive e conhece, embora apenas o homem possa trazê-la à consciência refletida e abstrata. E de fato o faz. Então nele aparece a clarividência filosófica. Torna-se-lhe claro e certo que não conhece sol algum e terra alguma, mas sempre apenas um olho que vê um sol, uma mão que toca uma terra. Que o mundo a cercá-lo existe apenas como representação, isto é, tão-somente em relação a outrem, aquele que representa, ou seja, ele mesmo. – Se alguma verdade pode ser expressa a priori, é essa, pois é uma asserção da forma de toda experiência possível e imaginária, mais universal que qualquer outra, que tempo, espaço e causalidade, pois todas essas já a pressupõem; e, se cada uma dessas formas, conhecidas por todos nós como figuras particulares do princípio da razão, somente valem para uma classe específica de representações, a divisão entre sujeito e objeto, ao contrário, é a forma comum de todas as classes, unicamente sob a qual é  em geral possível  pensar qualquer tipo de representação, abstrata ou intuitiva, pura ou empírica. Verdade alguma é, portanto, mais certa, mais independente de todas as outras e menos necessitada de uma prova de que esta: o que existe para o conhecimento, portanto o mundo inteiro, é tão somente objeto em relação ao sujeito, intuição de quem intui, numa palavra, representação. Naturalmente isso vale tanto para o passado e o futuro, tanto para o próximo quanto para o distante, pois é aplicável até mesmo ao tempo, bem como ao espaço, unicamente nos quais tudo se diferencia. Tudo o que pertence e pode pertencer ao mundo está invariavelmente investido desse estar-condicionado pelo sujeito, existindo apenas para este. O mundo é representação." (Schopenhauer, 2005)

A subjetividade do conhecimento - II


No contexto científico das ciências sociais aplicadas, apesar da objetividade não poder ser alcançada plenamente, deve permanecer como um ideal platônico a ser atingido, considerando-se que o refinamento da pretensão de verdade seja um processo dinâmico regulado por aproximações sucessivas à realidade objetiva, a medida que as fontes de informação são revisitadas.
Grande parte das interpretações e consequentes entendimentos e decisões cotidianas, instigados pela imersão em um oceano de dados a que somos submetidos diariamente, são baseadas em processos intuitivos mal adaptados à situações que envolvam subjetividade, incerteza e informações incompletas ou de má qualidade. Cada um de nós tem sua própria visão de mundo, formada por crenças, paradigmas e dogmas, que atuam como filtros durante o processamento de nossas percepções. Situações e eventos contra-intuitivos, associados a percepções nem sempre atreladas ao que podemos denominar de realidade, são fatores que comumente nos levam a cometer erros de entendimento (MLODINOW, 2009a).
Apesar do caráter subjetivo da representação do mundo pelo sujeito, conforme proposto pela fenomenologia, cabe ressaltar que esta subjetividade não implica necessariamente que imprecisão e distorção, com a semântica pretendida neste texto, de interpretação divergente dos fenômenos observados, alterando seu sentido, significado ou intencionalidade, sejam inerentes a todo conhecimento apreendido do mundo empírico. A subjetividade do conhecimento, no âmbito das Ciências Sociais, confere uma circunstância contextualizante, mas não determinante para a ocorrência de imprecisões e distorções na representação deste conhecimento. Neste sentido, a distorção é caracterizada pelo conflito de Interpretações, individuais ou coletivas, divergentes da realidade objetiva.
Adicionalmente ao caráter não determinante da subjetividade para a ocorrência de distorções, a visão hermenêutica de Gadamer, para o qual “o fato de que pode haver múltiplas interpretações de um texto não destrói a identidade de um texto, nem exclui leituras totalmente inadequadas e errôneas, daquelas que destroem o texto” (SOKOLOWSKI, 2004), confere um caráter de independência entre as possíveis interpretações de um texto e o próprio texto.
 
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